Se o “fim oficial” da Idade Média termina com o século XV (1492 ?), de facto ela prolonga-se pelo século XVIII e XIX. Do ponto de vista da economia, da vida social, da política e quiçá da arte, nada de fundamental mudou até ao período contemporâneo.
Se do ponto de vista económico tudo continua a epicentrar-se na agricultura, do ponto de vista social mantém-se um sistema hierárquico em que a nobreza ocupa o topo da pirâmide. No que diz respeito à ordem política continua a vigorar o sistema teocrático das monarquias. É certo que a arte e a cultura dos séculos XV e XVI assistiram a mudanças profundas mas de todo radicais.
No essencial a arte e a cultura moderna são uma cópia fiel ou idealizada da observação da natureza. O re/nascimento humanista e naturalista, a invenção da imprensa escrita, os descobrimentos de novos mundos, a cisão religiosa da cristandade (reforma / contra-reforma) se bem que muito importantes, será que são factores suficientemente relevantes para redefinir um novo período? No dizer do historiador medievalista já octogenário Jacques Le Goff, o fenómeno verdadeiramente determinante e que emerge no século XVIII, fruto da Revolução Industrial (Inglaterra) e da revolução político-ideológico-filosófica (Revolução Francesa) é a ascensão do ateísmo e o crescimento de indiferença relativamente à religião.
Após a Revolução Francesa a palavra Arte adquire um significado diferente. A história da arte que até aqui era a história dos mestres de maior êxito e mais bem pagos, de que hoje nem os principais nomes conhecemos, passou a ser a história de um punhado de homens solitários, marginais, que tiveram a coragem e a persistência de questionar os academismos e formalismos de que era prisioneira. A nova arte é uma anti-arte, um protesto contra as convenções do passado e um manifesto sempre, sempre renovado da tradição do novo. Como predizia Nietzsche (1844 – 1900) na introdução ao O Anti-Cristo impunha-se uma nova visão do mundo: “ouvidos novos para música nova; olhos novos para ver o que está mais longe; uma consciência nova para verdades mudas até agora, e a vontade para a economia do grande estilo (…) a liberdade absoluta com respeito a si.”
Se toda a obra de arte é uma resposta a um problema, qual a questão, qual o problema com que os movimentos de vanguarda se debatiam? A arte ocidental nos fins do século XIX está perante um impasse, um problema. Qual? Como chegar a uma verdade mais profunda, mais simples, mais verdadeira, mais genuína, mais pura se todos os movimentos e tendências artísticas de momento tinham o mesmo denominador comum: rejeitara a arte como imitação ou aparência da natureza?
O movimento de vanguarda iniciado nos fins do século XIX e inícios do século XX a que impropriamente chamam de “arte moderna” caracteriza-se essencialmente por um processo radical de des/construção da cultura europeia e ocidental com todo o potencial de des/estruturação das nossas sociedades. Na base da revolta irracionalista contra a razão ocidental, está no dizer premonitório de Nietzsche o racionalismo dogmático da cultura europeia. Dionísio opõe-se naturalmente a Apolo, a cor ao desenho, o escravo ao senhor, tal como o irracional ao racional.
Muitas são as formas que esta revolta reveste. O movimento expressionista que encontrou solo fértil na Alemanha, é sem qualquer dúvida uma das mais significativas. Partindo do pressuposto de que a insistência da arte europeia na harmonia, beleza e polimento nascera da recusa em ser sincero, os expressionistas defendiam abertamente a necessidade de enfrentar os factos nus e crus da existência humana expressando através de sentimentos fortes a sua compaixão pelos deserdados da sorte, pela fealdade da vida real. Como dizia Nietzche “cumpre ser íntegro até à dureza nas coisas do espírito para poder suportar a minha seriedade e a minha paixão.” (…)
O importante da arte não era já a imitação da natureza, a precisão do desenho, a beleza natural ou ideal, mas a força e a expressão pura de sentimentos pela escolha de linhas, cores e movimentos, só aparentemente desgraciosos e desarmoniosos, o retorno à pureza da arte primordial e autêntica, o reencontro com a simplicidade e espontaneidade auto-expressiva da arte infantil e primitiva. O seu compromisso com o lado negro da vida foi tal que se tornou quase um ponto de honra dos expressionistas pintar feio, evitando qualquer detalhe de sugestões de beleza formal.
A exposição luso-brasileira patente na Galeria Geraldes da Silva – Porto, de 2 a 22 de Junho de 2007, dos pintores Erisson (Natal – Brasil) e de Carlos Inácio (Porto) são a expressão viva do grito vital do ser humano. A força expressiva das suas obras é evidente. Se o Erisson se afirma mais na vertente de um expressionismo gestual de linhas, movimentos e formas livres e espontâneas quase infantis, a pintura a óleo de Carlos Inácio é um exemplo vivo de um expressionismo existencialista. Se um transborda numa espontaneidade quase surrealista, o outro dilacera-se até à exaustão no toque e retoque de linhas, formas e cores. Duas formas diferentes de atingir o mesmo objectivo.
Porto, 11 de Maio de 2007
Abílio Afonso Ferreira
Prof. de Estética
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